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Lux Delfino escreve “Reflexões sobre o nó".


 

Eu me chamo Lux Delfino, sou arte-educadora e acredito que quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.


Paulo Freire lançava muitas brabas, né? Eu acho essa aí de cima muito afiada.


Dou aulas desde 2018 no sistema público de ensino do Distrito Federal, mais especificamente no Gama, e desde então tenho tido muitas percepções sobre todo esse universo que implica ensinar e mediar. Percepções que não foram apresentadas em sala durante a graduação, percepções que a classe média do Brasil não considera na hora de votar, percepções que nem os responsáveis dos alunos mostram estar interessades em ter.


Essa parada de oprimido e opressor é tão cabulosa que quando tu mostra humanidade em sala de aula a galera quebra. Quando você mostra seus sentimentos, os alunos não mostram saber reagir a isso.

É como se eu me deslocar desse lugar de opressão e mostrar vulnerabilidade fosse sinal de alerta pra geral...é como se elus estivessem acostumados a algum nível de violência por parte dos professores, não sensibilidade.


Se mostrar sentimento e humanidade em sala de aula já foi algo inesperado, vocês podem imaginar o quão revolucionário é permitir que essa galera se expresse?


MUITAS vezes eu mostro liberdade para os alunos arrocharem o nó, e eles não sabem lidar com isso por não estarem familiarizados. Isso dói um pouco, confesso que me deixa um pouco irritada às vezes. Vocês têm noção do nível desse condicionamento que impede alunes de se permitirem criar em um contexto livre, e de fazerem o que sentirem vontade? E até de serem quem querem ser, ou podem ser?


Eu fico irritada porque dói ver como o sistema não forma, e sim formata a gente para realizar comandos, assumir papéis sem questionar e reproduzir violência, principalmente se for sobre gênero.

Quando no início do texto eu falei sobre lançar a braba é porque eu entendo que isso significa dizer aquilo que deve ser dito, aquilo que é difícil e que alguém deve dizer.


Nada é óbvio até que alguém diga, ainda mais para crianças e adolescentes. É essencial que a gente possa oferecer um espaço seguro para se questionar aquilo que se tem dúvida, é importante que a gente incentive os jovens a lançarem as suas brabas também.


Se você pudesse voltar no passado para lançar a braba pra você mesme…

Qual braba seria lançada?


-Eu queria poder dizer para aquela neguinha arrochar mais o nó, que tava pouco.



A neguinha sou eu com menos de 10 rsss

Aí tu me pergunta: Como é que se arrocha o nó aos 10 anos de idade? Pode-se explorar o arrochamento do nó em várias modalidades:


Desde emular uma picumã com a camiseta até secar a picumã imaginária numa toalha muito garota, por exemplo.

  • Dá para arrochar o nó também na escolha da gata que tu vai ser para as brincadeiras de lutinha, eu GERALMENTE era a Tempestade ou a Sindel. =D (Todo meu C.U.N.T. vem desse treinamento de anos com uma curadoria bem afiada)

  • Consumindo mahou shoujo com gosto, jogando muito dolls.com.br nos anos 2000.

  • Desenhando e recortando minhas bonequinhas de papel e suas respectivas roupinhas já que eu não podia ter uma boneca de verdade. =(

  • Dançando as coreografias do É o Tchan e me espelhando na Débora Brasil e na Sheila Carvalho

  • Experimentando estéticas no banheiro da minha mãe com as maquiagens dela, super alerta, cheia de receio mas com um sentimento de que era sobre algo que pulsava ali, que nessas experiências moravam a minha verdade.


Por cenários como esses que descrevi eu reforço o estímulo em arrochar o nó. Acho que assim eu poderia acolher melhor tanto minhas tentativas de experimentar com as expressões de gênero quanto meus sentimentos de inadequação.


Quando eu digo “arrochar o nó”, eu me refiro à viver a sua verdade, me refiro à possibilidade de existir em toda a sua potencialidade. Arrochar o nó é desafiar as normas ao expressar a sua identidade de forma genuína, é atravessar o medo existente e sentir os prazeres de ser quem se é.

Pode-se arrochar o nó em muitos graus também, seja de forma intensa ou moderada. Isto varia muito de acordo com a necessidade do contexto, também pode variar a partir do sentimento que venha a pulsar no interior desta que está prestes a arrochar.


Esses sentimentos são os motivadores principais para o arrochamento do nó. E é importante que exista antes um exercício de percepção desses sentimentos e sensações para se arrochar o nó com eficiência. Atualmente eu consigo observar em mim uma necessidade muito grande de subversão e deboche. Acho que isso é tão genuíno em mim que até as consequências de um nó muito arrochado pesam pouco quando comparadas à satisfação de existir plenamente com o nó arrochado.


Encontrar a temperança entre o nó arrochado e o afrouxamento do nó é uma habilidade que se desenvolve tanto no se arriscar quanto no se respeitar. Digo isso pois a lei do ritmo me mostrou que uma corpa descansada e uma mente menos exausta conseguem até estourar um nó se for do seu agrado. Mas para isso, em algum momento, é importante que exista um respiro também.


Acho que falar sobre arrochar o nó sem colocar na luz a necessidade de afrouxamento desse mesmo nó é romantizar um fluxo não-saudável de entrega, de esforço, de ação. E no geral a gente está acostumada a sempre entregar muito, né?

Ainda sobre arrochar o nó: você já teve essa sensação que nem eu, de encontrar mais conforto na ficção para construir alguma coisa? Sabe aquele exercício de construção de narrativa onde a gente coloca “E se…” antes da frase para pensar universos que funcionam a partir de outros paradigmas?


Os meus “E se…” me motivam a aproximar a minha realidade dos cenários que eu imagino, e me motivam a atender essa criança interior com euforia. E é muito doido como as crianças não conseguem disfarçar a reação quando entram em contato com essas materializações do meu imaginário.


Parece que rola mesmo uma afobação de ter encontrado algo que as contempla e que não acharam em outro lugar, acho que com os adolescentes é um pouco diferente...parece que eles têm mais vergonha de expressar a euforia, sabe?

Eu, enquanto professora, aprendi que educação visual não acontece só em sala de aula...e tenho aquela lombra de tentar arrumar o próprio quarto antes de tentar mudar o mundo, sabe?

Então, eu tô muito nesse movimento de investir em coisas que deixam a minha criança interior eufórica, e tenho esperança de que esse meu processo de cura possa ajudar outras pessoas que entrem em contato com a minha realidade, dar o exemplo e compartilhar minhas percepções.


Essa parada de dar o exemplo me fez construir um senso de responsabilidade que me moveu atrás de ferramentas e recursos que ajudassem nessas trocas que faço enquanto professora, seja com adolescentes ou criancinhas.


Conheci a Comunicação Não-Violenta que mudou minha vida e minha visão sobre interações humanas. Sério, é maravilhoso! Eu tive que aprender a me comunicar de mais formas, tive que conhecer abordagens mais acolhedoras para conseguir me comunicar com as necessidades que essa minha criança interior tinha e tem. E é muito difícil não assumir automaticamente os padrões de comportamentos antigos mesmo conhecendo novos caminhos. Mas eu vi os resultados gerados ao acolher essa criança interior e isso foi uma grande validação, me deu fé em mim.


Acho que só consegui me conectar com essa parte de mim quando eu pude considerar a chance de perceber isso, dedicar uma atenção extra para entrar em mim mesma.


Acabei desenvolvendo mais segurança para expressar meus sentimentos e me humanizar em sala de aula a partir dessa abordagem, e faço questão de toda oportunidade que aparece tô lá eu:

“vocês já ouviram a palavra da comunicação não-violenta?".

Essas abordagens que direcionam nosso foco e linguagem para os sentimentos e sensações, ao invés de reforçar julgamentos ou cobranças, podem ajudar em momentos de gatilho, permitindo criar meios de expressão de forma mais segura. Ao poder dizer o que temos necessidade, sem que isso saia como uma bomba, podemos abrir mais possibilidades de trocas saudáveis.


Nesses aprendizados eu descobri o que realmente significa acolher alguém.

É importante desenvolver a capacidade de ouvir, dar atenção, certificar-se das necessidades e limites do outro para que as trocas sejam saudáveis. Mas para que possa existir esse processo de fluxo expressivo, as pessoas precisam humanizar as crianças. Humanizar a visão que se tem delas. Humanos expressam, humanos erram, humanos precisam de atenção.


Eu tô falando esse monte de coisas pois eu acho que no Brasil de 2021 é essencial que nossas crianças saibam o que é acolhimento, por exemplo.


É importante que elus aprendam a usar e desenvolver seus recursos internos.

É vital que nossas crianças saibam reconhecer e impor seus limites.

Mas tudo isso deve ser ensinado, principalmente aos pais, mães e responsáveis em geral, para que isso seja construído e assistido ao decorrer dos anos.

Mas o que é ensinado enquanto prioridade é especular o sistema reprodutor do feto em uma festa de revelação.


É importante que haja questionamentos sobre quem se beneficia com a falta de educação das crianças, sobre quem é que se beneficia com a falta de educação sexual dos jovens e sobre quem é que se beneficia com o binarismo de gênero. Esses questionamentos podem trazer luz para muitos medos reais que merecem atenção.

É muito importante para as crianças que elas consigam reconhecer seus limites, expressar suas necessidades e pedir ajuda. É importante que os jovens estejam conscientes de recursos disponíveis para conseguir afirmar sua existência!


Recursos são meios que acessamos para afirmações de existência, são estratégias de sobrevivência. Além da comunicação não-violenta, a moda foi e é um recurso que me salvou muito e que eu uso para afirmar minha existência até hoje. Acompanhamento psicológico por um profissional é um recurso que ajuda a construir uma relação mais saudável consigo mesma, e redes de apoio também são recursos construídos a partir de afeto, muito importantes nesses processos de auto-descobrimento. Internet pode ser um recurso, produção artística pode ser um recurso, escutar música no fone pode ser um recurso, comer aquele doce de padoca quando a gente está meio pra baixo pode ser um recurso também.


Outro recurso importante pra mim é o deboche, este me ajuda demais a expressar sentimentos difíceis, e me ajuda a mostrar para a hegemonia a vergonha que ela tá passando. Debochar é ser uma professora preta e travesti em um país racista que mais mata travestis no mundo. O deboche me permitiu acessar lugares subversivos com humor, de forma que os alunos se mostram confortáveis em debochar juntes. O deboche aparece como uma ferramenta para bagunçar essa parada de oprimido e opressor, o deboche aparece como uma tentativa libertária de expressão que gera um respiro naquelu que debocha. Debochar é arrochar e afrouxar o nó ao mesmo tempo. É arrochar o nó para a hegemonia e afrouxar o nó para só ser, e com satisfação. Debochando eu existo plena.


É importante que aspectos como acolhimento, limites e recursos sejam apresentados para nós/sas crianças, interiores ou não, para que se possa arrochar o nó com gosto!



 

Lux Delfino, 26 anos, nascida em Brasília e criada no entorno da capital, é graduada em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília, trabalha com design desde 2012 e leciona desde 2018.


Sua produção está relacionada ao ruído em questões identitárias, cultura pop e tecnologia. Utiliza da sua vivência enquanto pessoa com identidade dissidente nos seus trabalhos em função de um lugar de fala que ainda é negligenciado frente à cultura hegemônica.

Também coleta memes, gifs e outros tipos de imagem que dialogam com sua vivência e identidade ao decorrer de pesquisas pela internet .

É na figura da minoria pela ótica padrão que se dá o erro/glitch/ruído social que tenta emular esteticamente dentro do seu contexto e linguagem.


Instagram: @luxdasdores


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