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Manika Adéníkẹ́ escreve “visitando orvalhos”






*** um convite ***


já tem alguns dias que vivo o amor como uma criança descobre que tem corpo. ela começa se olhando e rindo, nos primeiros meses de vida. as mãos são sempre coisas maravilhosas, as mexem como se bailassem. ficam observando os próprios movimentos, aprendendo que têm controle. que têm a surpresa dentro de si.


sonham acordadas. ou, ao menos, sem dormir.



** sonho porque estou viva**


desejo nunca correr o tempo pra alcançar um amor verdadeiro. um amor de novela, formal, profissional. um desses onde ninguém da relação tem tempo.


o contrato de relações vence muito fácil pra mim. acho que foi por isso desisti desse amor de uma vida toda.


s’eu não tiver tempo, não me tenho.


isto é, desisti da procura por alguém concreto. da pessoa que encarna minhas carências. eu continuo viva, continuo descobrindo meu corpo. e enquanto eu conseguir me maravilhar, sonharei. o amor será figurante na história.


sonharei com a paz de ser amada sem razão.



 

“tem gente que até ama com o coração”, contou Pietra. mas eu amo mesmo é com a risada frouxa. amo quando tô besta, sem saber que amo. amo com a barriga dolorida, fadigada.


** remendando desamor**


“Quando alguém vem lhe visitar [...] traz seu passado, seu presente e traz também o seu futuro”


pensar que cada pessoa reencarna várias vezes na mesma vida é bagunçar demais a cabeça. mas insisto.


já que em mim o amor como dedicatória, ‘amo alguém’, é uma questão ainda não perguntada, saber que sou capaz de me amar me basta - às vezes. assim, estou sempre visitando minhas vidas.


visito tanto quem fui, como quem fui me visita. seja pra resolver algo pendente ou dar um empurrão de coragem.


mas o amor próprio, assim como um nome, precisa de adaptação. uma hora a pergunta sempre chega, será que tô mermo satisfeita?


eu, que já fui várias, com vários nomes, sempre tenho que pensar se amo quem sou hoje. afinal, tive tantos corações que acumulo bombeamentos passados e, de novo segundo a Pietra:


“o tempo não cura nada. o tempo só passa, passa, passa…”


como se fosse uma árvore dentro da mata, sendo regada ao longo de séculos. sem nenhuma finalidade. e quem rega são as memórias.


 

eu y o sonho em terra de coração


se “quando se conhece, há muitas coisas que não se pode mais fazer”, há outras tantas que podemos transfuturar.


podemos reinventar completamente nosso caminho, nosso chão, sem definir qualquer coisa. plantar quartinhas, que carregam toda a história, como sementes.


transfuturar é provocar vários futuros e deixar à nossa intimidade a responsabilidade de escolha. um ato de amor a nós mesmas, onde entramos em modo automático com total confiança em nossa força. ainda que sem direção.


o que me parece, entre tantas parecenças de Pietra, é que não há coração que ame. não há amor que ame. não há amor. e isso não é uma constatação melancólica. é uma chance de pensar em sentimentos longes de poemas românticos. mas pertos, até demais, do corpo. pensar em


“extensão de corpo ou

extensão de mundo”


é sonhar. pensar entre as frestas do que já temos como comum, entre as fissuras no cimento sólido, é acreditar em nossas visões. sem fugir dos mundos.


sonhar é a própria feitura de nossa realidade.

feitura é nossa realidade sonhar.


podemos transfuturar o amor de quem chega com a sua história, refazendo o futuro que virá com alguém pelo sonho.


sempre acordadas. mexendo em verdades como se fossem nossas mãos.



uma quartinha cheia de água d’ocê


“posso te ofertar uma bebida que

você nunca bebeu em nenhum outro

lugar? É chamada de qualquer

coisa”


falar em borrar esse limite entre corpo-mundo é bem mais fácil a partir da imagem do cuidado. algo como um jardim.


cuidar das ervas que já estavam em um lugar, ou oferecer ao solo novas, é um trato com a boca que se alimentará de nós, um dia. sem dentro, ou fora. grata aglutinação.


e quando plantamos nossa força, bem firme, em um jardim? em quais páginas a história de uma quartinha assentada no mundo é escrita?


oferecida, primeiro, e depois alimento do solo. aos poucos, vai enfeitando o puxadinho de nosso corpo. recolocando tudo que estava à mostra de outra forma, planta significados.


transbordamos o que acumulamos, mas também precisamos fechar nossa quartinha. planta sem sede morre sem ar.


tô cansada de entrega afetiva, sabe? farta de me desconstruir em alguém, tô entregando qualquer coisa. até o resto de sentimentos por mim mesma. quero mais é que me entreguem suas mudas-quartinhas pra viverem em meu jardim.


amar com as pausas, sem viver da procura. esperar ser procurada. porque o silêncio anuncia o som, sempre. como se fosse a primeira vez.






 

todas as refs são à obra Terra de Coração (2021), da multiartista Pietra Souza, participante da Transfuture*

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Tô sendo a Manika Adéníkẹ́, bonita, poeta, curadora e fotógrafa passando diáspora no Brazil. Nascida na Ceilândia, moro no DF.


Minha poética é a do cotidiano. Seja em versos ou em fotografias pretas e brancas, produzo contemplações do que já tá nos arredores de nós. Sou uma militante de férias, gosto de fazer arte que se esquiva dos problemas.


Penso em poesia, mesmo quando escrevo em prosa. Sou hostil à razão.


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